Entre a liberdade de escolha e o direito à vida (sobre a internação compulsória dos usuários de crack)
Diário da manhã - Ari Queiroz
Apesar de defasados, os números estão aí para não deixar ninguém em dúvida acerca do crescimento do crack por todo o território nacional, principalmente nas regiões sul e sudeste, as duas mais ricas e desenvolvidas. Segundo dados do Cebrid – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, órgão do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp, obtidos pelo Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizada com cerca de oito mil pessoas de 12 a 65 anos de idade, o número de usuários dessa praga praticamente dobrou em quatro anos, passando de 0,4 para 0,7%. Na região sudeste, saiu do mesmo piso e chegou a 0,9%, enquanto no sul foi de 0,5% para 1,1%, mais que o sobro.
Logicamente, além de defasados, esses dados não espelham a realidade. Certamente, ninguém pode esperar que os usuários se cadastrem e mantenham seus dados atualizados, informando às autoridades a quantidade de pedras que consomem a cada dia. São números estimados, mas que em falta de outros mais seguros servem como alerta da necessidade de providências urgentes, antes que devasse nossa juventude de todas as classes sociais. Isso mesmo. Foi-se o tempo em que crack era coisa de gente pobre, a despeito da baixa do preço, não faz muito tempo, de cerca de dez reais por pedra para um real ou até menos, dependendo das circunstâncias.
Jovens de classe média ou alta, assim como o maltrapilho dos becos, consomem crack igualmente, todos buscando a mesma sensação de falso poder, liberdade e alegria passageiras. O conhecido médico Drauzio Varella, com a experiência de quem atua com dependentes químicos a mais de duas décadas nos presídios paulistas, afirma que os efeitos danosos do crack percorrem dos pulmões ao cérebro em menos de 10 segundos. Entre esses efeitos, para os que não morrem de infarto logo na primeira vez, conforme apontam alguns especialistas, estão a intoxicação, a perda do apetite e do sono, o emagrecimento exagerado, a degeneração irreversível dos músculos esqueléticos, oscilações de humor e a inevitável diminuição do desejo sexual.
Ninguém precisa disso para ser feliz. Aliás, isso não traz felicidade alguma, senão apenas tristeza, muita tristeza, particularmente para pai e mãe, que quando chegam a perceber praticamente nada mais podem fazer sozinhos para resolver o problema. Bater, não podem, ou se o fazem, não basta. Amarrar no fundo do quintal, menos ainda. Enfiar o dependente num casulo, de onde não possa ver, ouvir ou falar com outros iguais, ou fornecedores, também não parecer ser medida fácil, embora fosse eficaz.
Sim, eficaz. Creio que sem algum estímulo vindo de terceiro ninguém, por sua conta e risco, entraria para esse mundo da infelicidade. O vício, ou dependência, dois institutos diferentes, mas aqui utilizados como sinônimos, decorre pelo menos de três fatores: contato com a droga, contato com usuário da droga ou contato com ambiente onde há droga, segundo lição do mesmo Dr. Drauzio Varella, com quem concordo piamente, embora não tendo a infelicidade de conviver com alguém desse ramo.
Então, se as drogas estão por aí, e o crack, em particular, mais ainda, podendo ser comprado por centavos em qualquer esquina, não vejo outro remédio senão – digamos – internar o drogado, ou pretenso, logicamente, contra sua vontade, porque se depender dela isso jamais ocorrerá. Claro. É preciso separar o joio do trigo, ou melhor, o usuário de crack, de quem tem crack para fornecer e precisa de clientela, assim como de locais onde possa encontrá-lo. Muitos taxarão de arbitrárias medidas como essa; dirão que seus defensores não respeitam o livre arbítrio ou direito de liberdade dos outros.
Poderia até ser, mas não é. Principalmente quando menor de idade o viciado, mas também o maior. Direitos fundamentais não se anulam, nem quando aparentemente se chocam. Se de um lado reside o direito de liberdade do drogado, do outro se encontra seu direito à vida, ambos irrenunciáveis, inalienáveis e imprescritíveis. Justamente por isso, as autoridades devem intervir para, sacrificando momentaneamente o primeiro, possibilitar a salvação definitiva do segundo.
Preso em local de onde não possa ter acesso ao crack, tenderá o usuário a deixar de sê-lo, ainda que na marra. No começo, vai espernear; alegar crise de abstinência, e pode até ser verdade. Mas, passa. Do alto de sua experiência, o Dr. Drauzio Varella, citando presas da penitenciária feminina, disse ter perdido “a conta de quantas vezes as vi dar graças a Deus por ter vindo para a cadeia, porque se continuassem na vida que levavam estariam mortas. Jamais ouvi delas os argumentos usados pelos defensores do direito de fumar pedra até morrer, em nome do livre arbítrio.”.
Somente isso não basta. Assim como as prisões jamais serviram para reeducar algum criminoso, por nada de útil lhes ensinar, a internação de usuários de crack também não resolverá o problema sem que seja acompanhada de providências complementares, como tratamento médico e psicológico. De qualquer forma, é um começo. Melhor, bem melhor mesmo, ver o usuário internado compulsoriamente em alguma clínica de reabilitação que “internado” pelos mocós ou becos que formam as “cracolândias”, fedorento e doente esperando na curta e invisível, mas certeira fila da morte.
Seria bom se houvesse lei específica disciplinando a questão. Não há ainda, mas nossos juízes podem lançar mão da analogia para aplicar a lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que permite a internação compulsória de pessoas portadoras de transtornos mentais. Aliás, permite até mesmo a internação a pedido de terceiro, por isso denominada de “internação involuntária”, sem necessidade de ordem judicial.
Pode-se presumir, no entanto, que o dependente de crack não reagirá passivamente como o doente mental ante a iminência de sua segregação, devendo ser internado “na marra”, para o seu próprio bem, de sua família e de toda a sociedade, tanto em razão do perigo que representa, como por ser mais econômico tratá-lo e recuperá-lo que, por vezes, enterrá-lo e depois pendurar seus dependentes no caixa da previdência social.
Implicando supressão de direito fundamental, a internação compulsória se submete ao princípio da reserva de jurisdição, só podendo ser decretada por autoridade judiciária. Ainda analogicamente, esse juiz deve ser o da vara de família. No silêncio da lei, pode-se conferir legitimidade para requerer a internação forçada aos parentes, ao Ministério Público ou aos responsáveis pelo sistema público de saúde. Quem sabe assim salvaremos nossos “crackeiros”.
(Ari Queiroz, doutor e mestre em Direito Constitucional, juiz de Direito e professor universitário e de pós-graduação na PUC-GO e diretor da Faculdade Esup)
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