Internação compulsória é caminho a ser percorrido |
Para o médico, medida pode não ser a ideal, mas politizar a questão
torna a discussão inútil; segundo ele, ninguém tem receita exata para
tratar dependentes de crack
Folha de São Paulo - CLÁUDIA COLLUCCI - DE SÃO PAULO
Revoltado. É assim que o médico e colunista da Folha Drauzio Varella, 69, diz se sentir com a polêmica envolvendo a internação compulsória de dependentes de crack, adotada há uma semana pelo governo Alckmin.
Cancerologista de formação e com profundo conhecimento em dependência química, Varella considera a discussão "ridícula".
"Que dignidade tem uma pessoa jogada na sarjeta? Pode ser que
internação compulsória não seja a solução ideal, mas é um caminho que
temos que percorrer. Se houver exagero, é questão de corrigir."
Ele defende que as grávidas da cracolândia também sejam internadas
mesmo contra a vontade. "Eu, se tivesse uma filha grávida, jogada na
sarjeta, nem que fosse com camisa de força tiraria ela de lá."
A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha, na última quinta, em seu consultório no centro de São Paulo.
Folha - Muito se discute sobre a ineficácia das internações compulsórias. Na opinião do sr., elas se justificam?
Drauzio Varella - Não conhecemos bem a eficácia ou a ineficácia
porque as experiências com internações compulsórias são pequenas no
mundo. Mesmo as de outros países não servem para nós. O Brasil tem uma
realidade diferente.
Neste momento, temos uma quantidade inaceitável de usuários. E muitos
chegando aos estágios finais. Estão nas ruas, nas sarjetas. O risco de
morte é muito alto, e nós estamos permitindo isso.
Qual o tratamento ideal?
Depende da fase. Você tem usuários que usam dois ou três dias e
param. Tem gente que usa um, dois dias, repete e nunca mais fica livre. E
você tem os que chegam à fase final.
A gente convive com essa realidade, e quando o Estado resolve criar
um mecanismo para tirar essas pessoas da rua de qualquer maneira começa
uma discussão política absurda. Começam a falar que essa medida não
respeita a dignidade humana. Que dignidade tem uma pessoa na sarjeta
daquela maneira?
Está na hora de parar com essa discussão ridícula. Pode ser que
internação compulsória não seja a solução ideal, mas é um caminho que
temos que percorrer. Se houver exagero, é uma questão de corrigir. Vão
haver erros, vão haver acertos. Temos que aprender nesse caminho porque
ninguém tem a receita.
O debate está ideologizado?
Totalmente. É uma questão ideológica e não é hora para isso. Estamos numa epidemia, quanto mais tempo passa, mais gente morre.
Sempre faço uma pergunta nessas conversas: 'Se fosse sua filha
naquela situação, você deixaria lá para não interferir no livre arbítrio
dela?'
Eu, se tivesse uma filha grávida, jogada na sarjeta, nem que fosse com camisa de força tiraria ela de lá.
Quando vemos essa discussão nos jornais, parece que estamos
discutindo o direito do filho dos outros de continuar usando droga até
morrer. É uma argumentação frágil, jargões vazios, de 50 anos atrás. Eu
fico revoltado com essa discussão inútil.
E o que fazer com as grávidas do crack?
São casos de internação compulsória, o sistema de saúde tem que ir
atrás e internar mesmo que não queiram. O crack é mais forte do que o
instinto materno. Elas não param porque estão dominadas pelo crack. Tem
uma relação de uso e recompensa e acabou. Nada vale tanto quanto essa
dependência.
Como prevenir a gravidez na cracolândia?
É a coisa mais fácil. Há anticoncepcionais injetáveis, dá a injeção e dura três meses.
Haveria mais polêmica...
A menina não engravida para experimentar os mistérios da maternidade,
ela engravida porque na situação em que ela vive não há outra forma de
se relacionar com os homens. Essa é a realidade.
Precisa levar para um lugar onde terá amparo, um pré-natal decente. Não podemos ficar nessa posição passiva.
Por que é tão difícil adotar uma estratégia efetiva de enfrentamento do crack?
Pela própria característica da dependência. É uma doença crônica.
Você deixa de ser usuário de uma droga qualquer, mas não deixa de ser
dependente. É a mesma história do fumante. Há 20 anos sem fumar, um dia
fica nervoso, pega um cigarro e volta a fumar. Ou do alcoólatra.
Com o crack, é a mesma coisa, a dependência persiste para sempre.
Você pega uma pessoa que fuma crack, interna, passa por psicólogo, reata
laços com a família, passa um ano sem fumar. Aí, um belo dia, recomeça
tudo. Você não pode dizer que o tratamento falhou. Ele ficou um ano
livre. Isso não invalida que ele seja tratado novamente.
Fazendo uma analogia com a especialidade do sr., é como tratar um tumor avançado?
Exatamente. Eu pego uma paciente com câncer avançado, faço um
tratamento agressivo com quimioterapia e ela passa seis meses com
remissão da doença.
Acho ótimo. Pelo menos passou seis meses bem, com a família, tocando
as coisas. Aí, quando sai da remissão [volta do tumor], a gente tenta
outro esquema. A gente não se dá ao direito de não tratar um doente
porque a doença vai voltar. Por que não se faz isso com usuário de
drogas?
Isso acontece porque há muito preconceito com as dependências de uma forma geral?
Sim, temos muito preconceito. Nós usamos drogas também, uns fumam,
outros bebem, só que temos controle. E temos o maior desprezo pelos que
perdem o controle.
Qual o futuro do tratamento das dependências?
A medicina não sabe tratar dependência. Vejo na cadeia meninas
desesperadas, me pedindo ajuda. Eu fico olhando com cara de idiota. Não
tem o que fazer. Só posso dizer: fique longe da droga.
Não tem um remédio que você diga: você vai tomar um remédio bom em que 30% dos casos ficam livres da droga.
O problema é o prazer. Se você conseguir uma pequena molécula que
inative os receptores dos neurônios que recebem a cocaína, o sujeito
deixa de ter prazer. Há experiências com anticorpos para tentar desarmar
essa ligação, mas estamos em fase inicial.
O sr. acredita que veremos o fim dessa epidemia do crack?
Droga é moda, e a moda do crack vai passar ou ficar restrita a pequenas populações.
Mas para isso acontecer não é preciso uma política nacional de enfrentamento do crack?
Acho que temos que ter uma política nacional para definir as grandes
diretrizes. Mas não acho que vamos definir isso com políticas nacionais.
Temos que particularizar. Cada cidade tem que criar estruturas locais
de atendimento.
Nós perdemos muito tempo. Não fizemos campanha educacional, não
trabalhamos as crianças. Agora todos ficam horrorizados. Temos que ter
aulas nas escolas, aprender desde pequeno. Precisamos chegar antes da
dependência.
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