Vitórias na luta contra o crack

Vitórias na luta contra o crack

As frentes de batalha na capital que estão colecionando avanços contra uma das drogas mais devastadoras do país
por Pedro Henrique Araújo

Cerca de 500 pessoas invadem a pista na Rua Helvétia, entre as alamedas Cleveland e Dino Bueno, nos Campos Elíseos. Todas viciadas em crack. Portando pequenos cachimbos, a maioria age em ritmo acelerado e tem as pupilas dilatadas. Entre os que fumam a droga ao ar livre, há uma mulher aparentando estágio avançado de gravidez. São 8 horas da noite e a Cracolândia funciona literalmente a pleno vapor. Muitos ficam dentro dos “mocós”, como são chamadas as casas abandonadas da região que eles invadem. Alguns buracos nas paredes abrem caminhos escuros, estreitos e malcheirosos — e neles se escondem mais usuários em meio a ratos, baratas e a todo o lixo acumulado.
João Carlos Batista, de 45 anos, mais conhecido como João Boca, líder da Missão Cena (Comunidade Evangélica Nova Aurora), anda por ali como se estivesse no quintal de casa. Ele visita o local diariamente há quinze anos. Aproxima-se dos “noias”, faz brincadeiras, dá conselhos e os convida a frequentar um abrigo da igreja localizado na Luz. Segundo seus cálculos, 15% das abordagens têm final feliz, o que teria resultado na recuperação de 130 dependentes até hoje. “Parece pouco, né?”, diz o pastor. “Mas é muito por se tratar desse tipo de tóxico. Quando um cara termina os nove meses do nosso tratamento, tenho quase certeza de que não voltará para cá.” 
Usuários perambulando no centro: a droga é negociada e consumida à luz do dia
Usuários perambulando no centro: a droga é negociada e consumida à luz do dia
(Foto: André Porto)
O trabalho de João Boca faz parte de um circuito de intervenções de entidades dos mais variados tipos, de ONGs a igrejas, que vem colhendo vitórias no combate ao crack na cidade. Suas experiências são valiosas no momento em que se prepara uma grande investida para tentar debelar essa chaga devastadora. No início do mês, a presidente Dilma Rousseff anunciou um investimento de 4 bilhões de reais em programas voltados ao tratamento médico dos dependentes, à prevenção do consumo e à repressão ao tráfico. Desse montante, cerca de 500 milhões de reais serão destinados ao estado de São Paulo. “Apesar da boa intenção, sou cético quanto aos resultados, pois é a terceira vez que o governo federal lança um plano do tipo nos últimos anos”, afirma um dos maiores especialistas no assunto, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A Unifesp abriga vários projetos importantes ligados a esse universo. Iniciativa que se tornou referência no tema, o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) funciona há 25 anos e propõe uma abordagem de redução de danos. Os pacientes são orientados a diminuir a quantidade e a frequência de uso do crack, ainda que com a substituição da droga por outras mais leves, como a maconha. Embora seja polêmico, o método vem apresentando resultados. Uma pesquisa do núcleo acompanhou durante um ano cerca de cinquenta viciados submetidos a essa terapia. Num primeiro momento, quase 70% trocaram o crack pela maconha. “Depois de um período, eles acabaram abandonando tudo e ficaram limpos”, conta Dartiu Xavier da Silveira, um dos coordenadores do estudo.
Um trabalho com foco semelhante é utilizado no atendimento da É de Lei, ONG localizada na Rua 24 de Maio, no centro. Seu presidente, o psicólogo Bruno Ramos Gomes, de 29 anos, vai três vezes por semana à Cracolândia para divulgar o serviço. Por ano, ele recebe cerca de 700 pessoas que desejam se tratar. O objetivo do grupo não é extirpar o uso de substâncias ilícitas, e sim que o dependente químico domine o seu vício. “Um terço dos que atendemos consegue retomar a vida, e isso já é uma vitória muito importante”, diz Gomes. 

Rogério Ribeiro de Mello: um dia de cada vez na recuperação do vício
Rogério Ribeiro de Mello: um dia de cada vez na recuperação do vício
(Foto: Mario Rodrigues)
Na visão dos especialistas, o chamado processo de ressocialização, no qual o usuário abandona o cachimbo e a turma do crack para se concentrar em outros interesses, é uma etapa crucial no processo de cura. O Projeto Quixote, preparado para receber crianças e adolescentes, incentiva os participantes a integrar oficinas de arte, oferecendo cursos de grafite e hip-hop, entre outros. “Muitas vezes, a droga é o meio que a pessoa encontra para tornar um pouco mais suportável o ambiente onde vive”, explica o psiquiatra Auro Lescher, coordenador da entidade. “Quando ela descobre uma porta de saída para o vício, estamos mais próximos da recuperação.” No Quixote, as famílias dos dependentes são chamadas a participar de algumas das etapas do trabalho. Nos últimos doze meses, 209 dependentes passaram por ali. Desse total, 58 voltaram para casa e retomaram a rotina escolar.
Entre os projetos que oferecem estrutura clínica para o processo de desintoxicação, um dos mais importantes é o Serviço de Atenção Integral ao Dependente (Said), no bairro de Heliópolis, na Zona Sul. Surgida através de uma parceria entre o Hospital Samaritano e a Secretaria Municipal da Saúde, a iniciativa completou um ano em agosto. O programa cuida do usuário em tempo integral, por no máximo três meses. Durante esse período, oferece atendimento odontológico, quadras poliesportivas, oficinas, aulas, terapia individual e em grupo. Já foram realizadas mais de 500 internações, 65% delas relacionadas ao crack. Mesmo depois de passarem por clínicas de tratamento, os ex-usuários sabem que se afastar do inferno implica uma batalha diária, quase sem fim. Exemplo disso é a história do ajudante-geral Rogério Ribeiro de Mello, de 48 anos. Ele fumou as pedras por quase um ano. Perdeu casa, carro e emprego, além de ter chegado a ficar preso por suspeita de tráfico. Abandonou o crack no fim de 2009. “Cada dia que acordo bem é uma conquista”, comemora.

Fonte-Veja São Paulo
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